segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Diálogo da Morte com a Moda

MODA: Madame Morte, Madame Morte.
MORTE: Espere que seja a hora e virei sem que tu me chames.
MODA: Madame Morte.
MORTE: Vá com o diabo. Virei quando tu não quiseres.
MODA: Como se eu não fosse imortal.
MORTE: Imortal? Já é passado mais que o milésimo ano que já terminaram os tempos dos imortais.
MODA: Também a Madame é petrarquista como se fosse um lírico italiano do Quinhentos ou do Oitocentos?
MORTE: Tenho muita estima pelas rimas de Petrarca, pois nelas encontro o meu triunfo e por que falam de mim por toda parte. Mas, em suma, caia fora.
MODA: Vá lá, pelo amor que tu tens pelos sete vícios capitais, pare um pouco e olhe-me.
MORTE: Olho-te.
MODA: Não me conheces?
MORTE: Deverias saber que tenho uma má visão e que não posso usar óculos, porque os ingleses não os fazem de modo a servir-me e, ainda que os façam, não teria onde apoiá-los.
MODA: Sou a Moda, tua irmã.
MORTE: Minha irmã?
MODA: Sim, não te lembras de que nós duas nascemos da Caducidade?
MORTE: O que posso recordar se sou inimiga da memória.
MODA: Mas eu me lembro bem e sei que tanto tu quanto eu muito nos esforçamos para desfazer e trasmutar continuamente as coisas aqui em baixo, ainda que tu vás por um caminho e eu por outro.
MORTE: Caso não fales com teu próprio pensamento ou com alguém que tu tenhas na garganta, levante mais a voz e articule melhor as palavras, pois se continuares a colocar as palavras entre os dentes com esta vozinha de taquara rachada irei compreendê-la amanhã, já que o ouvido, caso não saibas, serve-me tão mal quanto a vista.
MODA: Ainda que sejas contrária aos bons costumes e que na França não seja habitual falar para ser ouvido, também por que somos irmãs e entre nós podemos não ter tantas formalidades, falarei como tu queres. Digo que a nossa natureza e uso comum é de renovar continuamente o mundo, mas tu desde o princípio te lançaste sobre as pessoas e o sangue; eu me contento no máximo com as barbas, os cabelos, as roupas, os bens domésticos, os palácios e coisas afins. É bem verdade que não me faltaram e não me faltam vários jogos comparáveis aos teus, como, por exemplo, agulhar por vezes orelhas, lábios e narizes, e rasgá-los com bugigangas que coloco nos buracos; queimar a carne dos homens com selos quentes que converto em marcas de beleza; deformar a cabeça das crianças com bandanas e outras engenhocas, impondo o hábito de que todos os homens do país tenham que ter a cabeça da mesma forma, como fiz na América e na Ásia; aleijar as pessoas com calçados pequenos; impedi-las de respirar e fazer com que os olhos lhes saltem para entrarem no corpete ajustado; e cem outras coisas desse gênero. E mais, genericamente falando, eu persuado e constranjo todos os senhores a suportar a cada dia mil fadigas e mil desconfortos, frequentemente dores e tormentos, e convido alguns a morrer gloriosamente pelo amor que têm por mim. Isso para não falar das dores de cabeça, dos resfriados, das fluxos de todo tipo, das cotidianas febres terçãs e quartãs que os homens recebem por obedecer-me, consentindo em tremer de frio ou em afogar-se de calor de acordo com o que quero, protegendo as costas com lãs e o peito com lona, fazendo qualquer coisa ao meu modo mesmo que seja com danos para eles.
MORTE: Em conclusão, eu acredito que sejas minha irmã e, se quiseres, tenho-a por mais certa que a morte sem que tu tenhas que me provar. Mas, estando assim quieta, eu desmaio; entrentanto, se te dá ânimo correr ao meu lado, tenhas cuidado para não cair, porque parto em fuga; correndo poderás falar de tuas necessidades; caso contrário, em consideração ao nosso parentesco, prometo-te, quando eu morrer, deixar todas as minhas coisas, e que tenhas um bom ano.
MODA: Se tivéssemos que correr juntas em competição, não sei quem de nós venceria a prova, pois se tu corres, eu o faço melhor do que se estivesse galopando; quanto a estar quieta em um só lugar, se tu desmaiares, eu me destruo. Assim que voltarmos a correr, e correndo como tu dizes, falaremos dos nossos casos.
MORTE: Em boa hora. Já que nasceste do corpo de minha mãe, seria conveniente que tu me ajudasse de algum modo a fazer as minhas coisas.
MODA: Eu já o fiz, no passado, mais do que pensas. Para começar, eu, que anulo e transtorno continuamente todos os hábitos, jamais permiti que se extinguisse a prática de morrer e, por isso, podes ver que tal uso dura universalmente até hoje desde o começo do mundo.
MORTE: Grande milagre que não fizeste aquilo que não pudeste fazer!
MODA: Como não pude? Tu demonstras não conhecer a potência da moda.
MORTE: Bem, bem, com relação a isso teremos tempo de discutir quando chegar o costume de não morrer. Mas, no meio tempo, gostaria que tu, como boa irmã, ajudasse-me a obter o contrário mais facilmente e mais rápido do que fiz até agora.
MODA: Já te contei a respeito de algumas obras que muito te beneficiam. Mas não são grandes coisas em relação à estas que te quero dizer agora. Algumas vezes, mais nesses últimos tempos, para favorecer-te, mandei cair em desuso e no esquecimento as fadigas e os exercícios que ajudam no bem-estar corporal, e introduzi ou coloquei em relevância incontáveis usos que recaem sobre o corpo de mil modos e encurtam a vida. Além disso, coloquei no mundo tais ordens e tais costumes que a própria vida, tanto em relação ao corpo como em relação à alma, é mais morta do que viva; tanto que este século pode ser chamado exatamente o século da morte. E enquanto antigamente tu não tinhas outras possessões que não covas e cavernas, onde no escuro semeavas ossaduras e poeiras, que são sementes que não dão frutos; agora tens o terreno ao sol e as pessoas que se movem e que andam por aí a pé; são coisas, pode-se dizer, de teu pleno direito, ainda que tu não as tiveste colhido desde que elas nasceram. Ainda mais, se antes eras odiada e insultada, hoje, por minha obra, as coisas se reduziram a termos que quem quer que tenha inteligência te prestigia e louva, antepondo-te à vida, e te quer tão bem que sempre te chama e te dirige os olhos como à sua maior esperança. Finalmente, porque via que muitos tinham a presunção de fazer-se imortais, isto é, de não morrer por completo, pois tinham a ideia de que uma boa parte de si não te cairia nas mãos, eu, sabendo que se tratava de bobagens e que quando estes ou outros vivessem na memória dos homens, viveriam, por assim dizer, de escárnio, sem gozar da sua fama mais do que se sofressem com a umidade da sepultura. De todo modo, compreendendo que esse negócio dos imortais te desagradava, pois parecia diminuir a honra e a reputação, acabei com esse hábito que busca a imortalidade, e também com o de concedê-la em caso de alguém que a merecesse. De modo que no presente, estás segura de que, a quem quer que morra, não lhe resta nem mesmo uma migalha que não esteja morta e que lhe convém ser subitamente enterrada, como um pescado quando é tragado com uma só bocada, com cabeça, espinhas e todo o resto. Essas coisas, que não são poucas nem pequenas, as fiz por amor a ti, querendo engrandecer seu estado na terra, como aconteceu. E para esse efeito estou disposta a fazer todo dia cada vez mais; com essa intenção fui a tua procura, e parece-me apropriado que de agora em diante nós não nos separemos, pois estando sempre em companhia poderemos nos consultar ao mesmo tempo de acordo com o caso e tomar melhores decisões do que antes, como também executá-las da melhor maneira.
MORTE: Tu dizes a verdade e assim quero que façamos.


Giacomo Leopardi. Dialogo della Moda e della Morte. In.: Operette Morali. Milano: Rizzoli Editore, 1951. pp. 29-33. (A opereta foi escrita entre os dias 15 e 18 de fevereiro de 1824 e publicada em 1827) Tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko. 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Eu, Etiqueta, Carlos Drummond de Andrade

Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comparo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.



quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Apelidos: dupla identidade, Martha Medeiros

Os apelidos são uma maneira poderosa de botar as pessoas nos seus devidos lugares. Essa frase é da escritora Doris Lessing, e chamou minha atenção porque diz justamente o contrário do eu sempre pensei de apelidos. Sempre achei que fossem um carinho, um atalho para a intimidade, ou ao menos um meio mais rápido de chamar alguém: em vez de João Carlos, Joca; em vez de Maria Aparecida, Cida; em vez Adalberto, Beto. Nenhuma má intenção. 
O que Doris Lessing quis lembrar é que apelidos nem sempre são afetuosos. A maioria dos apelidos nascem na infância e são dados por outras crianças que, como todos sabem, de anjo só têm a cara. Crianças adoram pegar no pé das outras, e á aí que começa o batismo de fogo.
Uma banana-split todo dia na hora do recreio. Gordo. Vai ser Gordo o resto da vida, mesmo que venha a ser jóquei, faquir, homem elástico: vai morrer Gordo. 
Se for loiro, é Xuxa. Se a voz for engraçada, é Fanho. Se não for filho único, é Mano, Mana, Maninha. Irmãos de quem, eu conheço?
Fui colega de um cara bárbaro que se chamava Antônio, mas se alguém o chamasse assim, ele nem levantava os olhos. É o Verde. Uma mãe e um pai colocam um nome lindo no filho e não pega.
FHC, PC, ACM, agora é mania: transformar pessoas em siglas. Sorvetão era o apelido de uma paquita chamada Andrea: Sorvetão! E o Caetano Veloso inovou mais uma vez, registrando seus filhos como Zeca e Tom, que jamis serão apelidados. 
Muita gente, secretamente, detesta a própria alcunha, mas são obrigados a resignar-se, sob o risco de perder a identidade. Qual o nome do Bussunda, do Tiririca, do Chitãozinho e Xororó? Anônimos Cláudios, Ricardos e Fernandos. Nomes que só existem em cartório.
Apelido gruda, cola, vira marca registrada. Tem negro que é Alemão, tem grandão que é Fininho, tem careca que é Cabeleira, tem ateu que é Cristo, tem moreno que é Ruivo, tem albino que é Tição. Apelido não tem lógica. Tem história. 
Doris Lessing, quando criança, tinha um apelido para sua segunda personalidade: chamava si mesma de Tigger. Doris era um nome para consumo externo, para denominar a menina boazinha  que aparentava ser. Tigger era o que ela era em segredo: sarcástica, atrevida, extrovertida. Com esse depoimento, Doris Lessing mostrou a verdadeira utilidade dos apelidos, em vez daquela coisa antipática de "colocar as pessoas em seus devidos lugares". O bom do apelido é que ele nos dá a permissão para sermos vários: Afonso Henrique combina com gravata, mas Ique tem mais a ver com bermuda. Esta aí uma maneira sutil de legalizar o nosso outro eu, o que ficou sem registro.  

terça-feira, 5 de agosto de 2014

FLIC - Primeiro cartaz

A Biblioteca Pública Municipal Djalma Andrade divulgou no último sábado, dia 2 de agosto, o primeiro cartaz promocional da Festa Literária de Congonhas.

Confira:


Acompanhem mais informações sobre a FLIC aqui no blog.